3 de julho de 2008

As músicas que fizeram de Roberto Carlos um Rei

Entre 1968 e 1971, o cantor e compositor lançou discos que modernizaram a canção e a poesia no Brasil, com a fusão de rock e soul music.


Roberto Carlos é o cantor mais popular do Brasil, desde 1965, com o lançamento e conseqüente estouro da canção "Quero que va tudo pro inferno", sua voz e suas canções têm marcado a vida dos brasileiros (e de habitantes da América hispânica de maneira intensa e curiosa. O cantor estourou como roqueiro e foi o primeiro a dar ao rock brasileiro uma cara própria - todos os seus herdeiros, de Mutantes a Los Hermanos, passando por Raul Seixas, Titãs, Legião, só pra citar alguns devem reconhecer esse pioneirismo.


Hoje, ele é um senhor romântico e religioso que mantem intacto o carisma, apesar de manter-se numa espécie de camisa-de-força estética, ou talvez até por isso mesmo.
Seus discos e especiais de Natal anuais se sucedem de forma ritualística há muito tempo. Afinal o fato dele se repetir o torna especial, único, sem par no mundo do show-business nacional, e continua a intrigar e a trazer provocações às avessas.

O curioso é que, ao ouvir o seu primeiro LP, Louco por você, de 1961, nunca relançado, o que se faz notar é um cantor de boleros, sambas, bossas e rock-baladas, ainda assim nitidamente influenciado pelo canto de João Gilberto, assim como aconteceria depois com seus companheiros de geração Chico Buarque, Caetano e Gil.

Mesmo sendo um romântico, Roberto estreou sem exageros interpretativos, seguindo o que havia de mais moderno e radical no Brasil em termos de estilo de canto.


Já no seu primeiro disco, um 78 rotações de 1959, Roberto canta João e Maria, uma bossa nova em que ele imita João, porém sem seu brilhantismo.
No segundo LP, de 1963, puxado por Splish splash - versão de Erasmo para um hit de Bobby Darin - Roberto opta pelo rock and roll entre rebelde e romântico, mantendo a influência de João Gilberto, o que nos próximos discos irá fazer dele não um simples adaptador do iê-iê-iê dos Beatles, e sim um intérprete original.

É interessante ressaltar que a letra em inglês de Splish splash é inferior à versão de Erasmo. Enquanto no original a onomatopéia que dá titulo à canção se refere ao barulho do sabonete na banheira, na versão de Erasmo, "Splish splash" corresponde a um beijo e a um tapa no escurinho do cinema - malícia e brejeirice como numa marchinha de Lamartine Babo (2 X 2).

Em "É proibido fumar" (1964), a dupla de compositores faz um clássico, a canção que dá título ao disco. A música chamou a atenção do iniciante Caetano Veloso para o que se estava fazendo fora do circuito dos pretensos seguidores da bossa nova, uma reflexão que iria levar ao tropicalismo em 1967:

"(...) percebíamos que sigo incendiando bem contente e feliz, nunca respeitando o aviso que diz que é proibido fumar era melhor poesia do que a maioria da música popular brasileira sofisticada época", escreveu o compositor baiano. É claro que os versos da canção têm conotação sexual como em "do beijo sai faisca / e a turma toda grita / que o fogo pode pegar (...) garota pegou fogo em mim".

Do mesmo disco, ainda, "Um Leão está solto nas ruas", de Rossini Pinto, tem esse erotismo malandro presente: "Um leão está solto nas ruas / calamidade igual nunca vi / jamais terá problemas de alimentação / se ele encontra o meu broto por ai". Mas o estouro do disco foi, sem dúvida, .. O calhambeque, versão de Erasmo, deu continuidade à tradição rocker carros-velocidade-garotas, iniciada com Parei na contramão, do disco de 1963.

No inicio de 1965, é lançado Roberto Carlos canta para a juventude, inferior ao seu antecessor.

O grande salto viria no seguinte, Jovem Guarda, com o estouro já citado de "Quero que vá tudo pro inferno", o disco traz boas canções da dupla Roberto & Erasmo e de outros compositores. Mas o que interessa, além da excelência das canções,é ressaltar a picardia malandra de algumas delas, o que dá um tom de brasilidade às mesmas inexistentes no rock nacional feito anteriormente.

A dupla compõe no estilo brasileiro de que fala o samba de Noel, "Não tem tradução" - "tudo aquilo que o malandro pronuncia/com voz macia, é brasileiro/já passou de português". Só que o malandro agora é o playboy de Mexericos da Candinha e Não é papo pra mim, que não quer saber de casamento, mas no fundo é um romântico ("porém ela no fundo sabe que ousou bom rapaz" e "talvez um dia quem sabe / encontre a felicidade / achando alguém pra valer / até morrer").

As lições do canto de João Gilberto continuam presentes em Gosto do jeitinho dela e Eu te adoro meu amor, de uma maneira mais explicita, e de forma menos aparente nas outras faixas.

Mas o que vale aqui não é mais imitar o ídolo, mas se inspirar nele para dar essa intenção de coloquialidade na interpretação das canções.

Roberto já é um intérprete maduro, e nos discos seguintes, Roberto Carlos (1966) e Em Ritmo de aventura (1967), o personagem do playboy romântico e roqueiro continua presente, principalmente nas canções de Getúlio Côrtes - O gênio e O sósia. Ainda de Getúlio, Negro Gato, se destaca não apenas pela canção, mas pela própria gravação, na qual o arranjo tosco da o tom da marginalidade ao negro gato de que fala a letra.

Uma gravação nunca superada, apesar de ter sido interpretada posteriormente por Luis Melodia e Marisa Monte, cujas gravações não possuem este tom protopunk da primeira.

Na linha do erotismo sutil de trabalhos anteriores, em Ar de moço bom, de Niquinho e Othon Russo, a personagem feminina é quem, após a cantada ("você está tão só / sozinho eu estou / que tal ir por ai passear?"), dá as cartas ("sem nada comentar / no carro ela entrou / e com o seu pezinho bem depressa acelerou").

A acelerada do pezinho corresponde ao ato sexual, nesta canção marcada novamente pela relação, tão cara a Roberto e ao rock, entre carros e garotas, num tom mais intimista que as antecessoras já citadas.



A Mudança

A partir de O inimitável, de 1968, antecipado pelo compacto com a música ganhadora do Festival de San Remo, Canzone por te, de Sérgio Endrigo, Roberto Carlos deixa de encarnar o playboy.

Na capa, o cantor aparece de perfil, com um violão de cordas de nylon, em vez de uma guitarra.

A influência da soul music, mais sutil no trabalho anterior, revela-se no canto, nas canções e nos arranjos, não apenas com guitarras, baixo e bateria, mas também com sopros e cordas.

Em algumas faixas, o uso do violão de cordas de nylon, tipíco da bossa nova, dá um tom de brasilidade ao disco, principalmente em Quase fui lhe procurar, de Getulio Côrtes, e Madrasta, de Renato Teixeira e Boto Ruschel, esta uma curiosa canção que enaltece a figura tradicionalmente vilipendiada da madrasta.


Não há nada na faixa que lembre o iê-iê-iê dos discos anteriores.

Um sofisticado arranjo de cordas e flautas emoldura a interpretação afinada e sensível da difícil melodia.

Roberto & Erasmo arrasam em Se você pensa, na qual o amor adolescente, característico dos tempos da Jovem Guarda, cede lugar a uma necessidade de maturidade na relação amorosa, com um carão dado à pessoa amada a partir de verses cortantes e interpretação raivosa. Como contraponto, em É meu, é meu, é meu, ainda da dupla, retorna o senso de humor cool neste fox, cuja letra descreve as partes do corpo da mulher amada como sendo da propriedade do amante.

Sem medo de parecer possessivo, Roberto canta doce e malandramente: "tudo que é seu, meu bem / também pertence a mim (...) da sua cabeça até / a pontado dedão do pé)..é meu, é meu, é meu". A partir dai, são mencionados o cabelo, a boca, olhos, ouvido, ombros, braços, mãos, joelho, pés, para arrematar, no final, com malicia: "tudo que eu falei, meu bem e o que eu não falei também / tudo que você pensar é meu, é meu, é meu".

Há momentos de pungente melancolia em As canções que você fez pra mim, também de Roberto & Erasmo, e E não vou mais deixar você tão só de Antônio Marcos, contrabalançada pela auto-ironia de Ciúme de você, de Luis Ayrão.

Nota-se a obra de um cantor maduro, para constar em qualquer discoteca básica da nossa canção popular, talvez o seu melhor álbum, se não fosse a presença das melhores canções de Roberto & Erasmo no disco posterior, de 1969, chamado simplesmente Roberto Carlos. Estas músicas são As curvas da estrada de Santos e Sua estupidez.

Na primeira, o tema da velocidade adquire tintas quase soturnas.

A rebeldia adquire uma causa. Os versos são confessionais. A raiz de todo desencanto é a carência afetiva e a dificuldade de entendimento na relação amorosa, explicitada no uso da métafora do espelho:

"você vai pensar que eu / não gosto nem mesmo de mim / e que na minha idade / só a velocidade / anda junto a mim (...) porque eu tento esquecer / um amor que eu tive / e vi pelo espelho /na distância se perder".


Na segunda canção, o ser amado é chamado de burro sem cerimônia:


"use a inteligência uma vez só /! quantos idiotas vivem só (...) sua estupidez não lhe deixa ver / que eu te amo".

Aqui Roberto & Erasmo se aproximam de Lupicinio Rodrigues e Herivelto Martins, nossos maiores desnudadores do ridículo e desconcertante dos embates amorosos. A poética ganha tons fortes e precisos pelo uso do insólito e a musa é desconstruída.
Para acentuar o tom algo dark do disco, contribui o arranjo de As flores do jardim da nossa casa, com um momento de contenção inicial, com apenas violão, baixo e bateria.

A estes vão se acrescentando as cordas em tons graves, à medida que a letra sugere a idéia de uma tempestade se formando ("as nuvens brancas se escureceram / e o nosso céu azul se transformou / o vento derrubou todas as flores / e em nós a tempestade desabou").

Para finalizar, um clímax entre dramático e sombrio com sopros em profusão interagindo com o cantor que agora berra o refrão: "eu já não posso mais / olhar nosso jardim / lá não existem flores / tudo morreu pra mim".

Aceito seu coração, a música seguinte, belíssima, de Puruca. possui um arranjo com oboés e violinos que se alternam para dar o tom preciso de delicadeza a esta canção que fala de reencontro. Quero ter você perto de mim, de Nenéo, é profundamente triste, com Roberto cantando no início à capela.

De novo, o arranjo vai num crescendo, com guitarra, baixo, e bateria, além de vibrafone e orgão sendo acrescentados à musica na proporção em que o tema se desenvolve. Só que aqui não há apoteose, pois a delicadeza da interpretação permeia toda a faixa, tanto do cantor, como dos instrumentistas.

E há o humor de Oh, meu imenso amor, de Roberto & Erasmo, valsinha na qual o interprete imposta a voz e brinca com a dramaticidade intencionalmente cafona da letra.

Colaboradora de Roberto em outros discos, Helena dos Santos deu a ele neste LP sua melhor canção: Do outro lado da cidade, que remete à bossa nova pela interpretação cheia de coloquialidade, alem de possuir uma riqueza harmônica maior que as outras.

O diamante cor-de-rosa é uma faixa instrumental, raridade em se tratando de um disco de Roberto Carlos, que é tema e título do filme estrelado por ele, Erasmo e Wanderléa nesse mesmo ano.

Com uma gaita solando a maior parte da melodia, é outra faixa melancólica. Além dos habituais Edson Ribeiro e Getúlio Côrtes, Roberto gravou, pela primeira vez, Tim Maia, cuja Não vou ficar responde pelo lado rock & soul do disco, junto com Nada vai me convencer, de Paulo Cesar Barros, ambas com interpretações intensas e num tom desaforado.


Essa sensibilidade ao dosar contenção e apoteose, delicadeza e desespero, ternura e rancor, faz deste outro LP antológico de Roberto Carlos.

O próximo disco, de 1970, tem a primeira musica religiosa de Roberto & Erasmo, Jesus Cristo, um gospel que faz sucesso ate hoje. E Pra você, clássico de Sílvio Cesar que tem os famosos versos: "ah, se eu fosse você / eu voltava pra mim". Mas é um álbum fraco, se comparado aos anteriores e ao que virá em seguida, que contém a canção de fossa mais popular da dupla Roberto & Erasmo, Detalhes.

Cantada de maneira doce e terna, e dialeticamente uma rogação de praga ao parceiro amoroso que deixa a relação: "não adianta nem tentar me esquecer"

Pra contrabalançar, outra pérola dos dois, De tanto amor, só que, desta vez, é um humilhante pedido a amada na hora da despedida: "me deixa pelo menos só te ver passar / perdoa se eu chorar".

Uma terceira canção equilibra os extremos das duas últimas: a audaciosa Amada amante, na qual o amor, apesar de clandestino, é resolvido. Os amantes se bastam e desatiam o mundo exterior:

"esse amor sem preconceito / sem saber o que é direito / faz as suas próprias leis (...) neste mundo desamante / só você, amada amante /faz o mundo de nós dois".

Num diálogo tropicalista, Roberto Carlos canta uma canção de Caetano Veloso, de versos desconcertantes, numa perspectiva existencial, inédita na carreira do Rei:

"eu sigo apenas porque gosto de cantar, tudo vai mal / tudo é igual quando eu canto e sou mudo tudo certo como dois e dois são cinco".

Caetano, ácido e cortante, do exílio, recebe a homenagem de Roberto & Erasmo, que dedicam a ele Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, amorosa canção de amizade que o próprio Caetano regravaria anos depois no disco do show Circulado. Roberto Carlos, considerado um cantor "alienado" pela esquerda brasileira, surpreende mais uma vez.

Mas não nos deixemos enganar: Roberto é essencialmente e cada vez mais um romântico.

E se no seu próximo disco, de 1971, o rock deixa de comparecer, por outro lado este é seu disco mais conflituado. Conflitos do homem comum, casado, que se defronta com os fantasmas da infância em O divã, a monotonia e atribulações do casamento com filhos em Quando as crianças saírem de férias e se põe no lugar do adolescente em conflito com os pais em À janela, para, aristoteticamente, concluir em Agora eu sei, de Edson Ribeiro e Helena dos Santos: "quem sabe menos das coisas / sabe muito mais que eu".

O pensamento de Roberto não é o do poeta que tem a perspectiva de enxergar uma outra realidade. Ele não tenta mudá-la, conforma-se com as vicíssitudes em Traumas, do disco anterior: "talvez um dia pro meu filho / eu também tenha que mentir".

Na irmandade de pensamento como sujeito normal, em oposição ao "maluco beleza", Roberto Carlos se identifica com seu público e a partir daí continua sendo amado por ele, envelhecendo com ele e passando a fazer discos cada vez mais burocráticos, não mais se desnudando, às vezes com uma bela canção aqui, outra ali, o que não o desmerece, só o torna cada vez mais misterioso, já devidamente conquistados pelos seus olhos tristes e fundos de Roberto-Carolina.

Afinal, o tempo passou na janela e ele não viu, mas assim como o Rio de Janeiro, Roberto Carlos continua lindo e sendo o nosso triste terno rei da música popular brasileira do coração.


Fonte: Revista +Rock nº 01, de dezembro/2003

Postagem / Edição: HenryRoss

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